AUTOR: IVO MARTINS
EDIÇÃO: (Catálogo) - Ed. Centro Cultural Vila Flor     DATA: Abril de 2010 





Um dos aspectos mais curiosos acerca da obra de Fernando Brito prende-se com o facto de, sendo ele um artista
relevante no contexto da arte contemporânea portuguesa, não existir ainda um documento agregador do seu
trabalho individual, cujo registo se encontra disperso por múltiplas publicações. Existirão muitas razões que
explicam esta lacuna mas aqui importará talvez centrarmo-nos naquela que é, em nosso entender, a principal: o
carácter escapista e esquivo da sua personalidade, características que se prolongam e materializam numa criação
artística polivalente e extremamente diversificada, tornando-a praticamente incatalogável e inapreensível.

Sente-se que estamos perante um artista que manifesta alguma hesitação em adaptar-se e colocar-se perante um
sistema cada vez mais formatado sobre lógicas comerciais e institucionais que exigem aos criadores capacidade
de resposta a solicitações de produção e de defesa simbólica do seu trabalho. Estas dimensões do campo artístico
são dificilmente compatibilizáveis com um carácter que recuse alinhar em exercícios de representação e auto-
promoção em favor de uma permanente auto-desconfiança em relação à sua própria obra, por vezes levada ao
limite da auto-sabotagem. Esta postura é acompanhada de uma ironia que surge da sensação de desfasamento,
própria de alguém que se imagina situado dentro de um contexto que obedece a regras incompreensíveis,
características que decorrem de uma pulsão criativa e, simultaneamente, de níveis muito altos de exigência que
estão sempre presentes, podendo dizer-se até que são inerentes, ao trabalho de Fernando Brito. Esta integridade,
por vezes confundida com uma mitologia da reclusão ou com uma iconografia apologética da marginalidade,
não é, neste caso, uma questão táctica, até porque sabemos que a sua obra não esteve assim tão afastada dos
circuitos institucionais, mas antes uma pré-condição de elaboração artística, algo que releva da profunda
autenticidade do seu trabalho, que permite ao artista esconder-se e anular-se por detrás dele e apagar os traços
visíveis do seu corpo e personalidade. Esta aparente negação de si próprio enquanto artista revela-se, no entanto,
a melhor estratégia possível de defesa do trabalho de Fernando Brito e exprime totalmente a potencialidade
invulgar do seu sentido do artístico, suportada num acutilante instinto de sobrevivência que lhe permite a
superação das sua dificuldades e fracassos.
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Um olhar prolongado e atento sobre o percurso de Fernando Brito permite-nos, portanto, constatar uma vontade
intrínseca de permanente movimento, resultando daí uma imprevisibilidade que torna a sua obra, como
referimos acima, inclassificável. A sua postura criativa assemelha-se à de um jogador a jogar contra as suas
probabilidades, alguém que tenta gerir a alternância instável entre a presença e a ausência no mundo exterior, o
ser visível e o ser invisível. O domínio destes processos é, no contexto da criação, fundamental, embora seja
sempre frágil e esteja sujeito aos imponderáveis da estrutura envolvente. No caso de Fernando Brito, esta gestão é
feita essencialmente pela sua intuição, pelo instinto de sobrevivência a que aludimos, funcionando como um
radar que lhe permite graus de percepção da realidade e dos factores que podem interferir com o seu espaço de
intervenção, algo que o artista considera inegociável e insusceptível de ser submetido à aleatoriedade e à
indeterminação das relações com o outro. Este carácter esquivo e maleável, sendo também o fruto de uma certa
inoperância, é a consequência inevitável do jogo a que ele se entrega. O “isolamento empenhado” de Fernando
Brito, interpretado apressadamente como uma postura de negação do sistema, é um processo de defesa, que
pressupõe distância e afastamento, em relação à vertiginosa amplitude das possibilidades do jogo e à sua
indefinição intrínseca, um exercício de auto-contenção consciente das dificuldades impostas pelas suas regras
mas ao mesmo tempo disponível para a mobilidade caleidoscópica por entre múltiplos pontos de vista que o jogo
lhe permite, circunstância necessária a uma criação livre.

A organização de uma exposição em torno da obra de um artista com estas características pressupõe e exige-nos
que concedamos ao autor um espaço amplo de intervenção, considerá-lo enquanto parte integrante e agente
activo do processo de concepção e definição dos conteúdos expositivos. Através desta estratégia, nos exactos
antípodas das lógicas hierárquico-funcionais e dirigistas do sistema de comissariado tal como ele é praticado
habitualmente, torna-se possível manter intactas a independência e liberdade do artista, permitindo-lhe
exprimir plenamente a sua visão artística e atingir assim um grau de compromisso que salvaguarde a obra, ao
mesmo tempo que a projecta e exponencia de uma forma que preserva a sua autenticidade original. Uma
abordagem distinta ao trabalho de Fernando Brito seria contrária à nossa compreensão das suas múltiplas
dimensões artísticas e humanas e colocaria em perigo a intenção de estabelecimento de uma relação directa com
o autor, de apresentar algo que possamos reconhecer como a face do artista, o prolongamento natural do seu
trabalho individual e da sua sensibilidade singular. Assim se torna explícita a natureza desta concessão, uma
postura aberta e apoiada numa configuração específica do trabalho do comissário enquanto mediador que não
pode ser interpretada como uma cedência da instituição ao artista, mas antes enquanto forma de
aperfeiçoamento da relação, de moldagem dos parâmetros de concepção da exposição tendo em vista a
construção de um espaço comum e partilhado de interacção, a recriação do habitat natural de existência e de
respiração da obra. Este esforço de apagamento dos traços visíveis da instituição impondo-se ao trabalho do
artista é algo que nos dá um prazer que advém do facto de nos sentirmos a cumprir o nosso papel de defesa
intransigente da obra.

Nesse sentido, a função única desta exposição será a de reconhecer a importância de Fernando Brito no contexto
da arte contemporânea portuguesa enquanto artista individual e actor principal de um corpo de trabalho ao qual
não foi prestado ainda o devido reconhecimento institucional. Pretende-se documentar uma obra, permitindo-
lhe a publicação de um catálogo, sem preocupações de carácter antológico ou de leituras retrospectivas, nem
sequer de incidência exclusiva na sua fase actual de produção. Esta exposição é uma visão global sobre um
artista ao qual foram dedicados apenas vislumbres parcelares e fragmentados, tentando alcançar assim um
ponto de síntese que possa exprimir um entendimento quase multidimensional do seu trabalho, algo possível
apenas através da relação e comparação entre as peças, sobre uma obra fugidia e escapista, fundada num
exercício permanente de recolecção de influências e na qual reconhecemos sempre um olhar (auto)irónico e a
intuição lúdica de um artista que experimenta múltiplos caminhos sem nunca se preocupar em saber
exactamente para onde vai.